Alguns conceitos já eram. Aquele papo de onde comem dois, comem quatro, por exemplo, morreu. Culpa de quem? Da tecnologia. Quer ver só: dê um tablet a uma criança e você tem sossego. Por horas. Dias. Até Meses. Agora, experimente acrescentar mais duas crianças a essa cena e tem-se um princípio de intifada. Que vai do popular, Mas, mãe, é meu… Ao não menos famoso, Tia, ele não quer emprestar…
Com a vó Celinha foi mais ou menos assim. Visto que a história também tinha crianças. No caso, os netos. E um computador, que ela precisava usar. Mas deixem que explique direitinho…
Vó Celinha, como o próprio nome indica, é uma velhinha gente boa. Dessas fáceis de gostar. Que andava amuada havia meses. Por conta da saúde, coitadinha, começando a incomodar.
Se não eram as costas, eram as pernas. Ou as ancas. Pior, mesmo, só a menopausa. Quando o corpo todo requentava. Com a vó Celinha fervendo por dentro e por fora. De um lado, ela, entrincheirada. Do outro, eles, os hormônios, enlouquecidos e em baixa. Incendiando ônibus e depredando patrimônio público em plena Avenida Paulista. Vixe…
A neta veio em seu socorro _Xá comigo, vózinha, que o Pezão te conserta num tapa…
_Que Pezão, o quê, menina-doida?
Ela riu e explicou _ Estudamos juntos, vó. Vai por mim. O Doc é fera…
E vó Celinha cedeu. Do jeito que sofria, pouco importava se era o Super Maneta ou o Profe Sovaco. Destampando a chaleira, estaria de bom tamanho.
Então, foi. Arrastada pela neta. Que chegando ao consultório, cutucou _Aproveite e calibre, vó. Dê uma aditivada na “coisa”, pro vovô ficar contente…
_Que é isso, menina? Demorô tanto pro velho sossegá, e vem você querê ligá ele de novo? Credo!
Emburrou. Até que foi chamada. E do jeito que entrou, saiu: contrafeita e resmungando. Só que lotada de feromônios, suplementos, cremes e recomendações. Além, é claro, da promessa de um breve retorno. Munida de melhoras e resultados.
Sossego foi o que faltou. Principalmente ao seu Leopoldo, Aí, vô. É fraco, não, né? Depois da geralzona da vovó, melhor deixar as barbas de molho. Só por garantia. Pra não decepcionar…
Tanto fizeram que ele especulou:
_É verdade isso aí que as crianças andam falando?
_Ô, Leopoldo! Tenha a santa paciência, meu filho… – tamanho rebuliço deixou vó Celinha ressabiada. Onde há fumaça…
Resolveu fuçar. Começando pelos laudos. Era só abrir uns envelopes e…
_Que envelope, nada, vó. Hoje em dia é tudo online.
_E faço como?
Era o caçula quem ajudava _Clique aqui, ó. Isso. Digite sua senha e código. Pronto. É só ler. Tá tudo aí, tim-tim por…
_Só um instantinho. Preciso do micro, agora! – era o Toco, neto mais velho, estudante de mecânica e dono do computador_ Tenho um laudo de motor avariado pra redigir e enviar.
Foi a vez da senhora responder _Pode usar, querido. A vovó espera…
_Valeu, vó – até que não demorou muito. Laudo enviado, salvo e minimizado na tela plana do computador.
E assim foi. Trocentas vezes. Um neto após o outro. Desembestados. Com um trem qualquer de última hora e máxima urgência que não podia esperar. E o computador encheu-se de arquivos. Todos devidamente salvos e minimizados, esperando pelo próximo usuário.
Quando a casa sossegou, vó Celinha perguntou mais uma vez ao caçula:
_E agora? Como vejo meus exames?
Ele, sem tirar os olhos de um brinquedo qualquer que empunhava, apenas disse _ Abra e leia, ué…
Tá. Mas, o quê? E como? São tantos ícones e caixinhas. Tudo tão igual. Enfim. Se todos os caminhos levam a Roma, qualquer um deve valer. E clicou onde bem entendeu. No primeiro arquivo que viu, que por acaso era do Toco. Aquele. O neto mecânico. E curiosa como estava, nem notou a diferença. Pigarreou. E começou a ler. Em voz alta. Até parar, estarrecida, Virgem mãe e santa…
Perdeu a cor e a graça à medida que corria o texto. Mas, seguiu. Abestalhada.
“Além do desgaste rotineiro, foram detectadas áreas de corrosão excessiva nos dutos de lubrificação. A falta de óleo afetou irremediavelmente a resistência das paredes internas. Sem falar no elevado nível de atrito nas rotativas e na baixa aderência no comando de válvulas…”
Engoliu em seco. E continuou.
“Nota-se aqui um caso extremo, onde a solução mais indicada é o uso de aditivos. A aplicação regular de Bardahl B12 tende a facilitar a entrada, além de suavizar o sobe e desce dos pistões, independente do perímetro, tamanho e da força aplicada…”
Na sequência, o baque seco. E o caçulinha que gritava.
_ Gente, acode aqui! A vó Celinha desabou!